terça-feira, 22 de abril de 2008

VISITA DE RUBEM ALVES A ESCOLA DA PONTE (PORTUGAL)

Esta é uma crônica que fala sobre uma escola muito especial de Portugal - a Escola da Ponte. Rubem Alves descreve maravilhado, aqui e em várias outras crônicas publicadas em seu site, o funcionamento desta escola. Leiam com cuidado e NÃO DEIXEM de comentar o texto clicando no link lááááá no final. Esta é nossa primeira ação/atividade. Boa leitura!

Quando visitei a Escola da Ponte o tema quente era a descoberta do Brasil e tudo o mais que a cercava. As crianças estavam fascinadas com os feitos dos navegadores seus antepassados nessa aventura, mais ousada que a viagem dos astronautas à lua. Imagine agora que algumas crianças tenham ficado curiosas diante do assombro tecnológico que tornou os descobrimentos possíveis, as caravelas. Organizam-se num grupo para estudá-las. Um diretor de escola rigoroso e cumpridor dos seus deveres torceria o nariz. ‘O tema ‘caravelas’ não consta de nenhum programa nem aqui e nem em nenhum outro lugar do mundo’, ele diria. E concluiria: ‘Não constando de nenhum programa não deve ser objeto de estudo. Perda de tempo. Não vai cair no vestibular.’
Acontece que uma caravela é um objeto no qual estão entrelaçadas as mais variadas ciências. As caravelas são um laboratório de física. Parece que a caravela brasileira, construída para comemorar o descobrimento, teve de retornar ao ancoradouro, por perigo de emborcar. Um famoso vaso de guerra sueco, o Wasa, se não me engano do século XVI, virou e afundou depois de navegar por não mais que 400 metros. Retirado do fundo do mar há cerca de 25 anos, ele pode ser visto hoje num museu de Estocolmo. O que havia de errado com o Wasa e a caravela brasileira? O que havia de errado tem, em física, o nome de ‘centro de gravidade’. O centro de gravidade estava no lugar errado. O tal centro de gravidade é o que explica por que os bonequinhos chamados João Teimoso não caem nunca! A regra é: para não emborcar, o centro de gravidade do navio deve estar abaixo da linha do mar. Essa é a razão por que os navios, freqüentemente, têm necessidade de um lastro - um peso que faz com que o centro de gravidade se desloque para mais baixo. Se o centro de gravidade estiver fora do lugar, o navio vira e afunda.
Os estudantes aprendem, em física, como parte do programa abstrato que têm de aprender, uma regra chamada do ‘paralelogramo’ - regra de composição de forças. Duas forças incidindo sobre um ponto, uma delas F1, a outra F2, cada uma numa direção diferente. Para onde se movimenta o objeto sobre o qual incidem? Nem na direção de F1, nem na direção de F2. Diz essa regra que o objeto vai se movimentar numa direção que se determina pela construção de um ‘paralelogramo’. É o que se chama de ‘resultante’. Os alunos aprendem a resolver o problema no papel, mas não sabem para que ele serve na vida. E o aprendido escorre pelos furos do ‘escorredor de macarrão’... Pois é essa regra que explica, teoricamente, o mistério de um barco que navega numa direção contrária à do vento. Se o barco estivesse à mercê do vento ele só navegaria na direção em que o vento sopra, situação essa que tornaria a navegação impossível. Quem se aventuraria a navegar num barco que só navega na direção do vento e não na direção que se deseja? Mas os navegadores descobriram que, com o auxílio de uma outra força, de direção distinta da direção do vento, é possível fazer com que o barco navegue na direção que se deseja. E é essa a função do leme. O leme, pela resistência da água, cria uma outra força que, colocada no ângulo adequado, produz a direção de navegação desejada. Os alunos aprenderiam melhor se, ao invés de gráficos geométricos, eles fossem instruídos na arte da navegação. Da física passamos à história, a influência de Veneza, dominadora do Mediterrâneo com seus barcos, sobre a tecnologia lusitana de construção de caravelas. Da história para a astronomia, a ciência da orientação pelas estrelas. O astrolábio. A bússola. Daí, para esses assombros simbólicos chamados mapas - que só fazem sentido para o navegador se ele conhecer a arte de se orientar, a direção do norte, mesmo quando nada pode ser visto, a não ser o oceano que o cerca por todos os lados. (Olhando para a lua, de noite, você é capaz de dizer a direção do sol?). Dos mapas para a literatura, a Carta de Pero Vaz de Caminha, a poesia de Camões, a poesia de Fernando Pessoa: ‘Ó mar salgado, quando do seu sal são lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos quantas mães choraram, quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador tem de passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu.’
Aceitemos um fato simples: um programa cumprido, dado pelo professor do princípio ao fim, é só cumprido formalmente. Programa cumprido não é programa aprendido - mesmo que os alunos tenham passado nos exames. Os exames são feitos enquanto a ‘água’ ainda não acabou de se escoar pelo ‘escorredor de macarrão’. Esse é o destino de toda ciência que não é aprendida a partir da experiência: o esquecimento.
Quanto à ciência que se aprende a partir da vida, ela não é esquecida nunca.

A vida é o único programa que merece ser seguido.

Rubem Alves
http://www.rubemalves.com.br/escoladaponte5.htm

Site oficial da escola da ponte:

http://www.eb1-ponte-n1.rcts.pt/html2/portug/bemvindo.htm